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O leite nas mãos do povo

by GRAIN | 20 Dec 2011

O leite é crucial para o sustento e a saúde das pessoas. A cadeia leiteira popular, independente, é abastecida por vendedores varejistas que pegam leite com camponeses, donos de alguns animais. Esses sistemas de “leite popular” concorrem diretamente com as ambições das grandes companhias de laticínios, como a Nestlé e outras, que querem se apoderar de toda a cadeia leiteira – dos estábulos aos mercados.

 

O leite popular

Bem cedo na manhã de qualquer dia, antes que a maioria das pessoas saia da cama, na Colômbia, cerca de 50 mil vendedores de leite atravessam as ruas das cidades do país. Esses “jarreadores” [de jarra], como são chamados, se deslocam de moto, com grandes tarros de leite que coletam em alguns dos milhões de locais produtores no campo colombiano.

Distribuirão diariamente 40 milhões de litros de leite fresco a um preço acessível a cerca de 20 milhões de colombianos que, depois, irão fervê-lo ligeiramente e assim garantir sua assepsia. Talvez não haja uma fonte de sustento, nutrição e dignidade tão importante na Colômbia como o que passou a ser chamada a cadeia leiteira popular, o leite popular.

Os jarreadores protestaram juntamente com os camponeses, os processadores de laticínios em pequena escala e os consumidores contra as repetidas tentativas do governo colombiano para destruir a cadeia leiteira popular ou leite popular.

Em 2006, o governo do presidente Uribe editou o Decreto 616 que proibia o consumo, a venda e o transporte de leite não pasteurizado, o que tornava ilegal o leite popular. O decreto desencadeou enormes protestos por todo o país que forçaram o governo a adiar a adoção da norma. A oposição popular não se apagou e, dois ou três anos depois, mais de 15 mil pessoas marcharam por Bogotá. O governo se viu forçado a protelar a questão por outros dois anos.

O Decreto 616 não foi a única ameaça contra o leite popular. Apesar da Colômbia ser auto-suficiente em leite, os tratados de livre comércio, em negociação com alguns países exportadores de laticínios, poderiam anular proteções chave para o setor, tornando-o vulnerável às importações de leite em pó barato – principalmente da União Europeia, onde a produção leiteira conta com fortes subsídios. Nas palavras de Aurelio Suárez, diretor executivo da Associação Nacional pela Salvação Agropecuária, um tratado de livre comércio com a UE seria uma “verdadeira hecatombe” para o setor leiteiro da Colômbia.

Em 2010, houve outra tentativa de avançar uma legislação proibindo o leite popular, e os opositores uniram-se contra os tratados de livre comércio propostos. Houve mobilizações maciças que não deixaram ao governo outra opção senão adiar a legislação para março de 2011, quando houve uma nova onda de manifestações e o governo teve que reconhecer sua derrota. Em maio de 2011, foi promulgado o Decreto 1880, que reconhece que o leite popular é legal e essencial.

Essa impressionante série de vitórias para a chamada cadeia leiteira popular na Colômbia é algo que pode inspirar muitas lutas semelhantes que travam em outras partes do mundo aqueles que produzem e vendem laticínios em pequena escala. A batalha, entretanto, não terminou. Foi aprovado um tratado de livre comércio com os Estados Unidos e recém foram concluídas as negociações sobre um tratado com a União Europeia. Mas o setor leiteiro está agora no coração da resistência popular contra esses arranjos e, aconteça o que acontecer, é claro que o leite popular [ou cadeia leiteira popular] estará presente quando o povo colombiano consiga quebrar as políticas do governo e apresente um novo caminho de transformação social.

Percentagem de mercados nacionais de leite que não são operados pelo setor leiteiro formal

Todos os países em desenvolvimento

Argentina

Bangladesh

Brasil

Colômbia

Índia

Quênia

80

15

97

40

83

85

86

México

Paquistão

Paraguai

Ruanda

Sri Lanka

Uganda

Uruguai

Zâmbia

 

41

96

70

96

53

70

60*

78

 

 

 

 

A luta é contra uma forte tendência global. Os laticínios, como outros alimentos e setores da agricultura, sofreram severas consolidações durante as últimas décadas. Hoje, algumas multinacionais, como Nestlé e Danone, vendem seus laticínios em qualquer lugar do Planeta. E a consolidação ocorre também nos estabelecimentos produtores. Crescem os rebanhos leiteiros e as novas tecnologias extraem mais e mais leite de cada vaca. Além disso, o setor financeiro injeta dinheiro novo no negócio dos laticínios, buscando uma fatia dos lucros.

Mas em quase todo o mundo, o setor leiteiro continua, em grande parte, nas mãos do que o governo e a indústria chamam de “setor informal” – camponeses que vendem seu leite diretamente ou através de vendedores locais que vão longe na área rural para comprar leite dos pequenos produtores e o levam direto aos consumidores. Os dados disponíveis sugerem que a cadeia leiteira popular abarca mais de 80% do leite que é comercializado nos países em desenvolvimento, e 47% do total global.

Na Índia, o maior produtor de leite do mundo, o leite popular ainda abarca 85% do mercado nacional do leite. A “revolução branca”, que viu triplicar a produção de leite entre 1980 e 2006, foi fruto desse setor popular. Foram o campesinato da Índia e os mercados locais que levaram à maciça expansão da produção leiteira no país nesse período. Hoje, 70 milhões de estabelecimentos rurais na Índia mantêm animais leiteiros, e mais da metade do total de famílias rurais do país, além de mais da metade do leite que produzem (que é principalmente leite de búfala), vai para alimentar as pessoas de suas próprias comunidades, enquanto uma quarta parte é processada como queijo, iogurte e outros laticínios fabricados por esse “setor local não organizado”.

São muitas as contribuições do leite popular para a vida das pessoas no mundo todo. É uma fonte chave de nutrição – é um alimento de subsistência para aqueles que têm animais e um alimento que é possível comprar para aqueles que não os têm. O leite fresco popular tende a ser muito mais barato que o leite processado e embalado que as companhias vendem. Na Colômbia, seu preço é menos da metade do preço do leite pasteurizado e embalado que é vendido nos supermercados. O mesmo ocorre no Paquistão onde os gawalas (os vendedores ambulantes) vendem à população consumidora, pela metade do preço do leite embalado ou industrial, o leite fresco que coletam nos produtores rurais.

O leite popular oferece ao campesinato uma das poucas fontes de renda consistente e regular. Como o leite é perecível, também é uma importante fonte de receita para os vendedores varejistas que todos os dias vão buscá-lo junto aos camponeses para levá-lo aos consumidores que diariamente compram leite, queijo, iogurte e outros laticínios frescos. Os costumes culturais comuns de aquecer o leite ou de fermentá-lo garantem que seja seguro consumi-lo.

As elites tratam com desdém o “setor informal” e consideram seus produtos como sem higiene e de má qualidade, e seu sistema é considerado ineficiente. Alguns, inclusive, queixam-se de que não paga impostos.

A verdade é que os produtores em pequena escala, os pastores e os camponeses sem terra, nos mostram que produzem suficiente leite para satisfazer as necessidades das pessoas, e os vendedores e processadores em pequena escala sabem muito bem como conseguir que o leite e outros laticínios cheguem em bom estado aos mercados. “O setor não organizado” pode fazer as coisas muito bem sem os grandes atores, quando não é minado com práticas desleais que reduzem o preço através de excedentes de leite ou perseguido com regulamentações injustas.

Diferenças entre a produção global de leite no Norte e no Sul Globais

                                                                                           Norte

Sul

Produção total de leite (2009)

362 milhões de toneladas

337 milhões de toneladas

% do mercado leiteiro operado pelo “setor informal”

<10%

80%

Número de vacas por estabelecimento

EUA =>100

Austrália = >100

França = >30

Japão = >30

Brasil= <30

Índia= <10

Quênia= <10

Turquia= <10

Empregos rurais por milhão de litros de leite/ano

5

200

Consumo de leite por pessoa (2007)

248 litros

68 litros

Custo da produção leiteira (dólares EUA /100kg)

Canadá =>60

Nova Zelânda=>30

Itália = >60

Uganda = <20

Paquistão =<30

Argentina = <30

Nos mercados onde já há tempo eram vendidos laticínios industrializados, o leite popular está retornando. Dos Estados Unidos à Nova Zelândia expandem-se os mercados para compras diretas de leite dos produtores, ou de leite orgânico ou cru, pois as pessoas buscam alimentos de melhor qualidade produzidos fora do sistema industrial. O campesinato também está farto do modelo dominante. A mudança para a produção intensiva os amarrou através dos altos custos e das dívidas: os preços do leite raramente cobrem os custos de produção. As comunidades rurais onde vivem esses camponeses estão fartas da poluição gerada pela presença crescente de megagranjas leiteiras. Há um movimento em favor de novos modelos de produção e distribuição que protejam os modos de vida dos camponeses e proporcionem aos consumidores alimentos de qualidade.

No entanto, o movimento em favor de um leite popular esbarra nas ambições dos que controlam a indústria global de laticínios, algo que no conjunto poderia ser chamado de “Os Grandes do Setor de Laticínios”. Num momento em que os mercados de laticínios no Norte já estão saturados, Os Grandes do Setor de Laticínios apontam suas baterias para os mercados abastecidos pelo leite popular. Essas corporações leiteiras e algumas elites abastadas tentam, juntas, reorganizar toda a cadeia de abastecimento, desde os estabelecimentos produtores, estábulos ou “tambos”, até os mercados.

Os Grandes do Setor de Laticínios

O controle corporativo sobre o abastecimento mundial de leite acelerou-se nos últimos anos com a globalização da indústria. As 20 maiores companhias de laticínios controlam, hoje, mais da metade do mercado global de laticínios (“organizado”) e processam um quarto da produção global de leite. Somente uma companhia, a Nestlé, controla cerca de 5% do mercado global, com vendas na ordem de 25,9 bilhões de dólares em 2009.

A Nestlé não é uma produtora de leite. Compra-o diretamente dos produtores e das abastecedoras para processá-lo e fabricar muitos tipos de produtos. A maior parte das outras vinte principais companhias são também processadoras ainda que, da mesma forma que a Nestlé, algumas começam a operar seus próprios estabelecimentos leiteiros.

 

As 20 principais corporações de laticínios

Classificação

Nome

País

Vendas de laticínios em bilhões de dólares, 2009

1

Nestlé

Suíça

25,90

2

Danone

França

14,79

3

Lactalis*

França

12,68

4

FrieslandCampina

Países Baixos

11,17

5

Fonterra

Nova Zelândia

10,20

6

Dean Foods

EUA

  9,74

7

Arla Foods

Dinamarca/Suécia

  8,64

8

Dairy Farmers of America**

EUA

  8,10

9

Kraft Foods

EUA

  6,79

10

Unilever

Holanda/Reino Unido

  6,38

11

Meiji Dairies

Japão

  5,13

12

Saputo

Canadá

  4,97

13

Parmalat*

Itália

  4,93

14

Morinaga Milk Industry

Japão

  4,81

15

Bongrain

França

  4,57

16

Mengniu

China

  3,77

17

Yili

China

  3,54

18

Land O’Lakes

EUA

  3,21

19

Bel

França

  3,10

20

Tine

Noruega

  3,02

*No dia 7 de julho de 2011, a Lactalis aumentou sua participação na Parmalat para

 mais de 50% e tornou-se a segunda maior companhia de laticínios do mundo.

**Com a venda da National Dairy ao Grupo Lala (México) em 2009, a posição da Dairy Farmers of America com certeza cairá, enquanto o Grupo Lala entrará entre os 20 principais, com vendas de cerca de 5 bilhões de dólares. Fonte: Rabobank

Nos últimos anos, todos os grandes atores da indústria de laticínios têm lutado agressivamente para se expandir para além dos saturados mercados de laticínios do Norte e conquistar os crescentes mercados do Sul. Andaram comprando os principais atores nacionais ou investindo em suas próprias unidades de produção. A Nestlé disse que cerca de 36% de suas vendas totais vêm, agora, dos mercados emergentes. Espera que para 2020 sua participação cresça para 45% e planeja duplicar suas receitas na África a cada três anos.

As esperanças que as corporações colocam nos mercados emergentes baseiam-se, em grande parte, nas projeções de uma crescente classe média no Sul que consumirá mais laticínios e os comprará em supermercados ou cadeias de alimentos que se expandem com rapidez. Os supermercados, como Walmart e Carrefour, estão fechados ao leite popular, da mesma forma que cadeias de restaurantes como McDonald’s e Starbucks. É simplesmente impossível para a cadeia leiteira popular cumprir com os padrões privados e com as políticas de aplicação das normas fixadas por essas companhias. No Chile, por exemplo, os supermercados insistem junto a seus fornecedores de queijo com prazos de pagamento de 4 a 5 meses, algo que poucos fabricantes de queijo em pequena escala podem aguentar. Assim, ao se consumir mais laticínios através dessas cadeias industriais menos se consome através dos mercados de leite popular. São as corporações as que mais desalojam fornecedores porque elas têm a possibilidade de cumprir com os critérios e as políticas de aplicação das normas fixadas pelos gigantes que vendem a varejo.

As margens podem ser mínimas, mas o mercado global é bastante significativo. As companhias transnacionais de laticínios estão fazendo um grande esforço para desenvolver produtos e estratégias de comercialização dirigidos aos consumidores de baixa renda. Como essas pessoas atualmente consomem principalmente leite popular, fresco, direto dos tambos, parte da estratégia das companhias é desacreditar esse leite taxando-o de “inseguro”, “insalubre”.

No Quênia, em 2003, as grandes processadoras de laticínios lançaram a campanha do “leite seguro” acusando a cadeia leiteira popular de vender leite adulterado. Uma coalizão de camponeses, vendedores, pesquisadores e cidadãos preocupados uniram-se e começaram a lutar contra essas ações. Com o respaldo da universidade queniana levaram a cabo seu próprio estudo, que demonstrou que as acusações eram completamente falsas.

Há muito mais razões para nos preocuparmos com a adulteração existente na cadeia industrial do que na cadeia leiteira popular, como o demonstra com grande detalhe o escândalo da melamina na China. A adulteração crescente do leite ocorria nos centros de coleta de leite que servem a várias das maiores companhias leiteiras da China. As corporações de laticínios em nível global também estiveram envolvidas. A Fonterra, com sede na Nova Zelândia, era dona de 43% da San Lu, a companhia de laticínios chinesa que esteve no centro do escândalo. Parece que o leite contaminado escoou inclusive para seus fornecimentos globais, e que também chegou à Nestlé e a outras multinacionais.

As grandes corporações de laticínios responderam procurando distanciar-se do escândalo. As provas levadas a cabo na Universidade Dhaka, em Bangladesh, mostraram que o leite Nido Fortificado Instantâneo da Nestlé, elaborado com leite em pó fornecido pela Fonterra, estava contaminado com melamina. Ambas as companhias questionaram publicamente os resultados e a competência do laboratório universitário, mas na mesma época começaram a surgir resultados semelhantes nos produtos da Nestlé em Taiwan e na Arábia Saudita. As autoridades sauditas consideraram que os níveis de melamina descobertos eram “altamente prejudiciais”. Foi necessária uma petição apelando à lei de liberdade de informação interposta pela Associated Press para que viesse à luz que a US Food and Drug Administration (FDA) encontrou melamina em testes realizados em leites de fórmula para bebês e outros suplementos nutricionais vendidos nos Estados Unidos pela Nestlé e por outras corporações.

A Nestlé respondeu dizendo que baixos níveis de melamina não são perigosos e podem ser encontrados em quase todos os produtos alimentícios. “Traços diminutos existem no ciclo alimentar natural”, disse a companhia, instando os governos a adotarem a norma de níveis mínimos de resíduo ao invés de uma tolerância zero.

Os Grandes do Setor de Laticínios alegam que darão mais oportunidades aos camponeses dedicados à produção leiteira no Sul. A Nestlé e a Danone contam com programas que buscam criar cadeias de abastecimento locais entre os pequenos produtores e várias ONGs empreendem projetos pilotos para ajudar esses produtores a cumprirem com os critérios de “qualidade” fixados pelas corporações. Mas isso é só uma gota no balde. É fato que em sua expansão pelo Sul os Grandes do Setor de Laticínios necessitam desenvolver algumas cadeias de fornecimento local, mas muito pouco do que reúnem será abastecido pela imensa maioria dos camponeses produtores de laticínios que mantêm, em média, alguns poucos animais leiteiros.

Ao contrário dos pequenos vendedores que vão longe na área rural com motos e bicicletas, as grandes processadoras não querem se aventurar às centenas de pequenos tambos rurais para coletar o leite. Nos raros lugares em que desenvolvem cadeias de abastecimento local, as companhias exigem que os camponeses levem seu leite aos centros de coleta, conhecidos como depósitos ou centros leiteiros, onde é comum que os custos de refrigeração sejam cobrados dos produtores. O típico é que as companhias comprem leite somente dos produtores que tenham assinado, mediante programas, um contrato de exclusividade com a empresa, e, no final, a companhia exerce um controle absoluto quando chega o momento de fixar o preço e determinar se o leite fornecido pelo produtor atende os padrões da companhia, o que frequentemente não acontece.

Na década de 1990, no Brasil, por exemplo, quando o mercado de laticínios deu um giro dramático aos supermercados e ao tratamento com ultra-alta temperatura para um leite embalado a vácuo, 60 mil camponeses produtores de leite foram apagados da lista pelas 12 maiores processadoras.

A Nestlé nega-se, inclusive, a comprar leite dos produtores tradicionais de leite no Quênia, em que pese os séculos de experiência que eles têm em produzir leite de muito boa qualidade. A companhia alega que o leite produzido e processado no Quênia não atende os padrões e, assim, ela procura conseguir leite em pó importado, principalmente da Nova Zelândia. Há pouco, a companhia lançou um projeto piloto para desenvolver a coleta local de leite sempre e quando os produtores participantes adotem raças de animais exóticas e de alto custo, alta produção e, no final das contas, um modelo de alto risco que a companhia impõe.

Os produtores no Quênia podem recorrer à cadeia leiteira popular para evitar as táticas corporativas. Em outros países, onde o mercado dos laticínios é controlado pelas grandes processadoras, os produtores estão numa posição muito mais vulnerável. O leite é um produto muito perecível, o que deixa o produtor sem muitas opções: tem que vender o excedente das necessidades da família ao preço que lhe ofereçam, seja ele qual for. 

O problema básico é que em quase todos os países os preços internacionais dos laticínios estão muito abaixo dos custos de produção. O preço é artificial, baseado em fortes subsídios à produção em excesso na Europa e nos Estados Unidos, e em um modelo de baixo custo para exportação na Nova Zelândia e Austrália – com o qual os produtores de muitos países não podem competir.

Ainda que em termos proporcionais o comércio internacional de laticínios seja bastante pequeno em relação ao mercado total de laticínios, seus impactos são enormes. O acesso às importações de leite em pó barato, e de outros “produtos” lácteos, permite às processadoras e aos varejistas exercer pressão para baixar os preços locais do leite, o que força os produtores a aceitarem preços abaixo dos custos de produção.

No Vietnã, onde o mercado de laticínios é dominado por algumas processadoras e as importações de leite em pó representam 80% do mercado nacional, as processadoras fixam seus preços locais, com aplicação das normas fixadas, de acordo com os preços internacionais do leite em pó. Esses preços estão abaixo dos custos médios de produção do camponês vietnamita. O representante nacional da Friesland Campina, com sede na Holanda, uma das maiores processadoras de laticínios no Vietnã disse que os produtores vietnamitas deveriam deixar de se queixar já que conseguem um preço que deixaria os produtores holandeses “enciumados”. O que não mencionou é que o preço que sua companhia paga aos produtores holandeses está ainda mais abaixo dos custos de produção, e que a única razão pela qual as granjas holandesas podem sobreviver com tais preços é porque recebem enormes subsídios, aos quais os produtores vietnamitas não têm acesso.

O ministro colombiano de agricultura, Andrés Fernández, admitiu que o TLC que seu governo começou a negociar com a União Europeia afetará negativamente mais de 400 mil famílias camponesas em toda a Colômbia.

O governo chileno, impelido pelos tratados comerciais que promoveu com importantes exportadores de laticínios, foi um dos primeiros a se mobilizar para uma liberalização do setor leiteiro. De meados dos anos 1980 a 2000, o Chile reduziu sua tributação para os produtos lácteos de 20% para 6%. O preço nacional do leite na porta dos estabelecimentos produtores despencou e caiu abaixo dos custos de produção. Apesar dos protestos dos produtores, o governo argumentou que suas ações forçariam o caminho para uma modernização do setor e que produtores logo se beneficiariam dos mercados de exportação. Nos anos seguintes, o Chile se tornou, de fato, um exportador de leite; mas as importações também cresceram. E o mais importante: todo o setor se transformou completamente.

Antes da liberalização, a indústria leiteira chilena caracterizava-se por contar com pequenos estabelecimentos rurais e uma próspera indústria local de processamento de laticínios. Era composta por pequenas unidades que produziam quase que totalmente para os mercados locais. A ditadura de Pinochet destruiu muitas das cooperativas do país, mas as cooperativas e os grupos de produtores sem fins lucrativos ainda tinham uma presença significativa nos mercados nacionais; a presença de multinacionais era bastante circunscrita. Ao abrir-se o mercado, as processadoras de pequeno porte, dependentes da produção local de leite, não puderam competir com os grandes atores que tinham a capacidade de utilizar o leite em pó importado para manter os preços baixos. As correspondentes mudanças nas leis de investimento estrangeiro permitiram também que os atores internacionais, como a Fonterra, se unissem e se apropriassem das mais importantes processadoras nacionais de laticínios. Em alguns anos, a Fonterra e a Nestlé – que tiveram uma colaboração formal em suas operações de laticínios em quase toda a América Latina - apoderaram-se de 45% do fornecimento nacional de leite. Ambas as companhias têm feito esforços para integrar suas operações chilenas mas, até agora, o tribunal nacional de concorrência continua bloqueando a possibilidade.

Os produtores chilenos de laticínios estão convencidos de que as duas companhias entram em acordo para fixar os preços e, em geral, se envolvem com práticas anti-competição que mantêm os preços baixos. Hoje, o preço do leite a varejo no Chile é seis vezes mais alto do que recebem os produtores na porta do tambo.

A liberalização do mercado de laticínios no Chile está levando ao desaparecimento de muitos pequenos estabelecimentos leiteiros. Os preços baixos e os fluxos comerciais, tão nefastos para os produtores em pequena escala, significam exatamente o oposto para as companhias estrangeiras e para as elites locais dos negócios que optam por uma agroindústria corporativa.

Os novos enormes estabelecimentos produtores, cujos donos estão ausentes, representam o futuro do fornecimento de leite para as transnacionais, que hoje dominam o mercado chileno de laticínios. Com seus grandes volumes, e seus robôs de ordenha, esses empreendimentos podem conseguir lucro mesmo com os preços do leite tão baixos, porque as grandes processadoras pagam preços mais elevados aos locais que lhes forneçam volumes maiores.

Em todo o mundo, no Norte e no Sul, as corporações e os grandes atores financeiros estabelecem mega-granjas e se apossam dos abastecimentos globais de leite.

Se no Sul continuar a abertura de mega-empreendimentos produtores, isto será brutal para os produtores em pequena escala. Na União Europeia e nos Estados Unidos, no Chile e na Argentina, onde resta muito pouco do sistema de leite popular, a industrialização e a concentração da produção leiteira apagarão do mapa enormes quantidades de pequenos produtores. Os Estados Unidos perderam 88% de suas granjas leiteiras entre 1970 e 2006; os nove países originais que formaram a União Europeia perderam 70% entre 1975 e 1995. O ritmo da destruição não diminuiu. Na Argentina, Austrália, Brasil, Europa, Japão, Nova Zelândia, África do Sul e Estados Unidos, o número de estabelecimentos produtores de leite diminuiu de 2 a 10% anualmente entre 2000 e 2005.

Isso contrasta com a maioria dos países em desenvolvimento onde as processadoras transnacionais de laticínios e as mega-granjas leiteiras continuam com pouca presença. Durante esses mesmos anos, o número de granjas leiteiras nesses países cresceu entre 0,5 e 10% anuais.

O salto para os estabelecimentos produtores de enorme escala é também uma catástrofe ambiental e sanitária. Tais estabelecimentos engolem enormes quantidades de água, a custas de outras granjas e das comunidades que dependem destas mesmas fontes de água. Requerem muita terra – não para o local onde vivem as vacas, mas sim para produzir a forragem necessária. Produzem quantidades enormes de dejetos. Uma vaca produz em média 20 vezes mais dejetos do que um ser humano, o que significa que uma granja industrial com 2 mil vacas produz tanto dejeto quanto uma cidade pequena. Quase nada dos excrementos é tratado, e termina em enormes lagoas nos arredores do estabelecimento. O sistema cria moscas e produz um mau cheiro que torna insuportável viver nas redondezas. A maior parte dos dejetos das lagoas será distribuída nos campos ou, o que ocorre com frequência, uma parte irá escorrer para as fontes de água, o que contaminará os corpos hídricos locais.

As lagoas de excrementos são importantes fontes de gases de efeito estufa. Um estudo apurou que um estabelecimento produtor industrial com lagoas de excremento libera 40 vezes mais metano (um potente gás de efeito estufa) do que uma granja orgânica onde as vacas contam com sua pastagem.

Os impactos da produção industrial sobre a saúde animal estão bem documentados. Os animais que produzem mais mediante o uso de rações com muita proteína, de ordenha frequente e de hormônios e fármacos que aumentam a produção, tornam-se suscetíveis a enfermidades e a ferimentos. Para compensar, os fazem ingerir grandes quantidades de antibióticos e outras drogas veterinárias. Nesses criatórios industriais surgiram superorganismos resistentes aos antibióticos, que podem infectar os humanos, como o SARM (estafilococo áureo resistente à meticilina).

Essas práticas também impactam diretamente a qualidade do leite. Há uma diferença substancial na qualidade nutricional entre o leite procedente de vacas de criatórios industriais e o que provém de vacas criadas em pastagens e sistemas orgânicos. Os hormônios e os antibióticos utilizados nas granjas industriais podem chegar ao leite consumido, produzindo efeitos colaterais muito nocivos. O hormônio de crescimento bovino recombinante, conhecido mundialmente como rBGH, por exemplo, é uma droga que aumenta a produção e que é utilizada amplamente em granjas industriais nos Estados Unidos, África do Sul e México [e Brasil], mas está proibida na Austrália, Canadá, Europa, Japão e Nova Zelândia, por estar vinculada a níveis excessivos de substâncias antimicrobianas e carcinogênicas no leite, que o torna um perigo para a saúde humana.

Como manter o leite longe das garras das corporações

O leite popular propicia meios de subsistência e alimentos nutritivos, seguros, baratos e saudáveis. As rendas obtidas são distribuídas equitativamente ao longo de todo o setor. Todo mundo ganha alguma coisa com a cadeia leiteira popular, exceto os grandes negócios - por isso forçam para destruí-la.

Nos países em que milhões, e não milhares, de produtores estão envolvidos na produção de leite, este não é uma mercadoria, mas sim uma fonte essencial de alimentação que pode fazer a diferença entre a miséria e a dignidade daqueles envolvidos na sua produção e distribuição. Teríamos que facilitar o caminho para que as pessoas, em nível local, abastecessem os mercados locais, como vêm fazendo sempre que existe a oportunidade.

As práticas desleais devem ser freadas, deixando de importar leite em pó e produtos lácteos baratos. O mínimo é impor taxas altas e amplas, como a União Europeia faz. Tais taxas protegem contra as práticas desleais, e contra o uso de produtos lácteos processados, baratos, e de gorduras não lácteas que substituem o leite verdadeiro.

Mas as medidas comerciais não são suficientes. O leite popular também está ameaçado pelos padrões e regulamentações de sanidade alimentar desenhados pelas processadoras industriais. O leite popular necessita de um sistema apropriado de sanidade alimentar, baseado na confiança e nos saberes locais. Tais modelos de segurança sanitária dos alimentos existem em todo o mundo, e são particulares de sua cultura local.

Mas é típico que as redes de supermercados sejam resistentes a se ajustarem às culturas locais, e imponham seus próprios padrões. O triunfo do leite popular requer que empreendamos ações contra os supermercados, exercendo pressão sobre eles e apoiando os mercados locais.

E há, também, a questão dos investimentos. O dinheiro flui, agora, de múltiplas fontes, locais e estrangeiras, para construir mega-empreendimentos produtores. É dinheiro de doadores e ONGs para programas que buscam fazer com que os pequenos produtores entrem nas cadeias de fornecimento das grandes processadoras.

Tudo no sentido de concentrar os estabelecimentos produtores e o processamento. A produção industrial gera enfermidades e contaminação. Arrasa a biodiversidade. As raças locais de animais leiteiros que abastecem o sistema do leite popular, sejam vacas, cabras, búfalos ou camelos, têm a flexibilidade e a eficiência de exigirem pouco, e permitem que os produtores em pequena e os pastores de todo o mundo aguentem as precárias condições provocadas pela mudança climática. Eles é que devem ser apoiados e não os “investidores” que conseguem todo tipo de cortes ou isenções fiscais generosas, fundos de doação e outros incentivos dos governos.

Os trabalhadores na indústria de laticínios também sofrem pelas mesmas tendências. Uma maior concentração na indústria significa menos empregos. Mais leite em pó, produzido através de processos mecanizados, requer menos mão de obra, significa menos trabalho do que o leite fresco, que depende de mão de obra intensiva. E, como se pode ver na campanha da International Union of Food Workers (IUF) contra a Nestlé, as companhias leiteiras transnacionais são das piores violadoras dos direitos trabalhistas.

Os laticínios em países como Paquistão e Uganda estão quase que totalmente nas mãos da cadeia leiteira popular. Em outros países, como Ucrânia ou Brasil, há uma mescla de ambos. Em quase todos os países do Norte, os laticínios já são preponderantemente operados pelas enormes processadoras industriais. Mas, inclusive nos países onde domina a produção industrial, sempre há formas de se caminhar para um sistema leiteiro mais equitativo.

Nesses países, os sindicatos lutam contra a concentração, as comunidades rurais lutam contra as mega-granjas contaminantes; os camponeses querem um preço justo pelo que produzem.

Mas há a necessidade de exercer ações globais organizadas contra os Grandes do Setor de Laticínios. As terríveis táticas que utilizam para destruir o leite popular beiram o crime. Chegou o momento de empreender campanhas contra os piores transgressores – Nestlé, Danone, Tetrapak - baseados em algumas campanhas já existentes como as relacionadas com a criação natural, o aleitamento materno e com os direitos dos trabalhadores. Devem-se expor as ONGs que colaboram com Os Grandes do Setor de Laticínios.

Os laticínios são uma peça chave para construir a soberania alimentar. Tocam a muitas pessoas. Calcula-se que cerca de 14% da população mundial dependa diretamente da produção de laticínios como modo de vida. Aí há espaço para a resistência e a transformação.

A forte aliança entre os vendedores, os consumidores e os produtores na Colômbia é uma fonte de inspiração. Devemos forjar alianças semelhantes em todas as partes, e além das fronteiras. O leite deve permanecer nas mãos das pessoas.

 

Para aprofundar

Aurelio Suárez Montoya, Colombia, una pieza más en la conquista de un ‘nuevo mundo’ lácteo, novembro de 2010: http://www.recalca.org.co/Colombia-una-pieza-mas-en-la.html

Punjab Lok Sujag, The political economy of milk in Punjab: A people’s perspective, agosto de 2003: www.loksujag.org

* Esta é uma versão resumida do documento do GRAIN, “El gran robo de la leche. Cómo es que los ricos y poderosos le roban una vital fuente de nutrición y sustento a los pobres”, www.grain.org

Author: GRAIN
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